Cantarolando uma velha canção regional,
Balbuciando qualquer sílaba que se encaixasse naquele velho ritmo country
Saiu animado de casa
Desceu lentamente os degraus da parte de fora
Avistava a rua, ninguém nela.
Sem olhar pra baixo, descia primeiro o pé direito
E com pose de que fazia grande esforço
Levava o pé esquerdo ao encontro do outro
Descia assim, sem pressa de destino
Uma calma quase agonizante
Namorava a rua deserta.
Nela chegou.
Fechou o portão sem ansiedade
Fitou os dois lados da rua
e virou para o que lhe parecia mais ermo
Ao se distanciar um pouco da casa, parou assustado consigo mesmo
Na frente duas crianças, de uns 12 ou 15 anos,
desciam a ladeira que se apresentava no final da rua.
Uma passou tão rapidamente que ele mal identificou o vulto
Uma voz de moleque gritava eufórica – Vou te alcançar seu peste!
E passou a segunda criança ainda mais rápido. Ambos riam, pode perceber.
Assustou-se porque percebeu um sorriso que amanhecia em suas entranhas
Aquela cena rápida passou-lhe pela vista como um dejá-vu
Voltou com passos rápidos para casa. Estava eufórico, feito uma criança de bicicleta...
Abriu o portão e deixou-o aberto, sem manquitolar apressou-se.
Passou pelo jardim como um foguete, deu a volta na casa
e entrou no porão feito um embrião.
Lá estava sua bicicleta, velha, tingida pela ferrugem.
Seria possível consertá-la? Botá-la na ladeira e sorrir contra o vento?
Seu desejo era tentar, ao menos tentar...
Tirou a bicicleta do canto sujo, pegou uma cadeira para alcançar um pano encima de uma das prateleiras.Lá estava outra surpresa... Outra interrupção dos segundos socou-lhe o estômago
Ressurgiu a sua frente uma pilha de lembranças
Que sempre estivera ali,
aguardando sua vontade de revivê-las, de revê-las.
Sentou-se na cadeira.
Uma camada de pó camuflava a sobra material de sua infância
Velhas revistas em quadrinhos
Empoeiradas, mas conservadas pelos pláticos que as embrulhou muitos anos atrás
Uma sensação de felicidade o contagiou ao recuperar aquelas páginas
Pensamentos e sensações voltavam-lhe à memória
Molharam-lhe os cílios, mas não chorou
Esfregou a anti-palma das mãos contra os olhos e enxugou-os
Parou feliz e levantou a vista
Percebeu sobre a prateleira do lado uma velha caixa em que guardava fotos de uma vida
Aliás - de uma não - de várias vidas.
Retirou sem cuidado alguns objetos de cima da caixa e colocou-a sobre o colo
Transpirou sua vida quase esquecida
Não tinha o hábito de revisitar-se por meio de fotos
Confiava sua vida quase integralmente à memória (que já falhava há um tempo)
Quando lembrava das tardes vividas ao lado de sua família
Vinha imediatamente um grande céu azul sobre sua cabeça
Algumas falas sonoras, lembrava-se da voz de algumas pessoas, do sorriso
De pequenos trechos de conversas que deviam ter durado horas,
Recordava-se de alguns móveis,
de pessoas sentadas em alguns cantos de memória
E embora não se lembrasse de quase nenhum flash fotográfico,
de quase nenhum momento em que se antepôs a uma câmera
Encontrou fotos guardadas ali:
Seus irmãos, pais – todos novos!
amigos em festas de comemorar sabe-se lá o quê
alguns estranhos registrados ao fundo - que se lembrava vagamente de ter visto
fotos desfocadas, imagens cobertas por polegares distraídos,
fotos tiradas de surpresa – tinha ares mais naturais, menos guardem-me-para-a-posteridade
Encontrou uma foto muito antiga de um cachorro que tivera quando criança
todo preto com manchas brancas nas patas, vira-lata.
Com olhar absorto fixou-se no cachorro, de súbito
lembrou-se de um outro bixo que tivera – por que raios desejara ter domínio sobre outros animais?
Um pequeno esquilo que a mãe lhe dera junto com uma gaiola,
todo dia visitava o bichinho até que este adoeceu e faleceu. – sentiu-se minimamente culpado por esta morte
mas pensou que ao longo dos anos a memória o havia absolvido, pois nunca mais lembrara desta vida que passou pela própria
Guardou a foto na caixa.
O que o levara até o porão? Não se lembrava mais...
Não possuía o hábito de reviver a própria vida,
de lembrar do que acabara,
do que havia acabado mas continuava em seu peito.
Ainda sentado movia os olhos emocionados
Estava tudo ali, tudo!
Suas memórias materializadas em cada canto em que batia a vista
Viu quadros que gostava
Embora não tivessem espaço do lado habitado da casa,
Achou um violão descascado e sem cordas apoiado na parede.
Nele havia feito algumas canções, julgou-as belas por um tempo
Registrara em notas-ralas e letras mal-elaboradas os amores mal sucedidos
Músicas ruins para bons amores, boas sensações...
Percebeu que havia mais da sua vida encostada num canto empoeirado
Do que na sala limpa e organizada em que passava suas recentes tardes
Lá embaixo, com seus antigos pertences
Percebeu que sua vida havia mudado,mas que ele era o mesmo
Mudanças chegam, e ficam
E as vezes param de mudar por exigência da vida
Mas ele continuava com sua jovem necessidade de sentir o novo
Controlou-a durante anos, abstendo-se.
Sentiu uma rotineira vontade de arrumar tudo o que tirara do lugar
De organizar as caixas, reencostar a cadeira, manter a ordem.
Mas não o fez.
Relembrou uma velha canção country
Que lembrava muito um ritmo regional
E cantarolou em voz berrante
Saiu do porão, tirou os sapatos
E correu descalço sobre a grama molhada do jardim
Sentia-se novo novamente,
Sentia-se ele como não sentira em anos
A vida rebatia em seu peito
Percebeu que era preciso guardar novas memórias
Porque as antigas
Já estavam empoeiradas.
FIM