18.6.20

CUIDADO! ATENÇÃO! SENTIDO!

O sentimento foi dividido e promovido ao campo das ideias.
Mas chegou a tal posto sem comprovação de diploma.
Separado do corpo, trabalha à paisana, passando-se por pensamento.
Não é!

O sentimento é visceral, é sensação.
Ele dá no corpo, dá no peito, 
dá angina, dá azia, dá refluxo. 
Afrouxa as pernas.
Dá consequências físicas.

Como educar o sentir?
Algo tão primitivo, tão profundo e íntimo.
É como tentar reeducar as células para que elas não deem câncer.

O resíduo que o seu corpo deixou no meu corpo
Espreita-me até em casa.

Se tu és constante mudança
Eu amo a pessoa de ontem?

E como posso ser credor do seu afeto
Se não lhe contei o que se passou na penúltima madrugada?

Mas as estrelas, fantasmas cósmicos,
Não são menos contempláveis por serem passado.

Enxergamos a luz de distantes corpos 
que talvez já não existam
e, ainda assim, emocionamo-nos.

A natureza é econômica.
Então, num reflexo irrefletido, repito
fazendo uma reedição dos acordos afetivos 
dos meus pais e seus ancestrais. 

Apostando todo o meu vazio num único ser.
Tornando você uma extensão inseparável de mim.

Sou mamífero desmamado,
rompido, jogado no mundo, 
inseguro, abandonado, 
buscando, sem criatividade, preencher grande buraco.

Viver longe dos palcos,
sem vestir personagens,
faz com que eu me revisite diariamente, sem pausa,
sem rotina que distraia, sem descanso.

Persigo ideal alheio e antigo,
que me foi herdado,
já ultrapassado,
então: 
pra onde eu sigo?
Se o instinto inevitável,
inconsciente, irrefreável,
leva-me as mais sinceras emoções?

1.6.20

Rua de Cima

Lá na Rua de Cima é a rua onde tudo passa. Se você quiser ir a algum lugar é certo que passe por lá. 

Aqui em baixo, no descampado, ainda não levantaram tantas moradias, mas está ficando cheio. Antes havia apenas uma quadrinha de futsal com tabelas de basquete sem as cestas, roubadas. Hoje sobrou ainda uma das traves. 
À tarde os meninos soltavam pipa mirando incansavelmente o céu, mal percebiam as crianças de bicicleta que quase raspavam seus pés testando novas curvas ante as latas de linha no chão.
Agora à noite, tem duas fogueiras e uma corrente de frio que venta gelando a nuca. Pessoas que passavam desviam seu destino para ficar perto da fogueira. Suspender um pouco. Unindo-se ao fogo, abrem um silêncio contemplativo. O olhar penetra, imóvel. No ouvido os estalos da madeira e alguma música negra jamaicana tocando.

Fora o corpo já todo coberto contra a noite fria, as máscaras fazem um novo papel: a respiração abafada esquenta o rosto. Com este novo item escondendo a boca, os olhos estão dialogando muito mais. O mais tímido dos órgãos agora encara. Fixos e vivos numa conversa particular, de língua própria. Assim se passara no caixa da padaria antes que eu me influenciasse pela fogueira. Os olhos dela eram muito claros. Duma cor assombrosa. Os meus? Eram míopes, pouca informação consentiam. Não fora um diálogo muito justo. Houve um encantamento versus meus óculos diminuindo o tamanho dos olhos.  A máscara fornecia calor mas embaçava as lentes. Sinto que olhos assim não estão alfabetizados nessa nova comunicação de boca vedada.

Dificultou a comunicação no caixa e atrapalhou-me todo no trajeto até a padoca. A sorte é que não tinha ainda escurecido completamente. O céu continha uma coloração amarela. Não era o costumeiro alaranjado do fim do dia. Hoje estava amarelo e negro. A Rua Lá de Cima possui uma vista agradável quando o dia afrouxa a claridade anunciando a noite. Entrega-nos um cenário que escurece as casas e ressalta seus contornos no horizonte. É quando a pobreza ofusca e escapa do pensamento. Os olhos miram sem pensar em nada. Flutua de sua época. Exercita um cidadão do mundo, do lugar-nenhum, que compartilha o comum contemplando o eterno. Cores interrompem cores. Um piscante azul e vermelho vibra nos muros.

Na mesma rua, alguns policiais observavam o descampado lá embaixo. De cima, além do entardecer, dá para ver a entrada da lojinha. Traçavam um plano? Conversavam, apontavam. Conspiravam para minha segurança? Ou erámos o alvo? Seus olhares percorreram-me lentamente numa fração de segundo e seus olhos faziam as mesmas perguntas. Estranha a sensação de passar em frente a um símbolo de proteção e sentir-me, na verdade, ameaçado. A polícia olha a favela e a Favela olha de volta à Polícia. O surgimento da autoridade em meio pobre parece sempre ter o intuito - e o direito - de se fazer obedecer. Uma violência autorizada, canalizada e direcionada. Incendeia um alerta em todos da rua. Condicionados à passividade, seguimos já sem a beleza das cores celestes. Namoro interrompido pelo vigor que vigiava. 

O olhar se voltava ao chão e capturava pensamentos frívolos. O reflexo do carro refletindo a crescente barriga que engordava. Um saco de lixo apoiado na árvore ao invés de um poste a poucos metros. “Escorar lixo na árvore ao invés do poste? O que pensa a árvore de nós? O poste com toda certeza não se importaria”.  O rosto coçava, desde que eu saíra de casa e sempre que eu lembrava de que não o poderia coçar. Relembrava todos os lugares que eu havia tocado. Chaves, portão, bolso, botão para entrar na padaria, comanda, saco de pão, cartão, sacola e álcool em gel.  Da Rua de Cima pro descampando pra minha casa tem dezenas de degraus. Quando subi ainda era dia claro, agora mal os vejo em seus diferentes tamanhos. De súbito uma desconfiança. Uma maluquice se disse saudável: “Será que esbarrei no corrimão com o pulso? ”. A solução repetida retorna, mais álcool em gel nas mãos. “Deve ser melhor passar nos braços”. Lambuzo também as chaves e levo-a nas mãos até a entrada de casa. 
Despeço-me do mundo - refúgio invertido - e volto para as minhas paredes. Já estou íntimo delas. Memorizei cada pequeno fragmento decadente de ruína. Ela, de tão fixa, já deve ter me decorado. A mesma coisa todo dia a mesma coisa. Numa ânsia, rapidamente esqueço das nuanças. Nuâncias. Nú. Hoje está frio. De novo.