Florisbundo não gostava de flores.
Pressentia algo ruim delas. "Exalam um cheiro de morte!"
Ser incrédulo. Floris nunca se dera por
vencido. Tinha uma propensão natural para perceber o lado negativo das coisas.
Descobria pequenos vãos e frustrava-se.
Teve muitos amigos e alguns bons. (Detinham-distraiam-divertiam)-no.
Depois, a sós, Florisbundo relembrava as cenas, pesava as palavras,
ponderava os exageros proferidos.
Punia-se por lembrar-se de frases ditas em
momentos inoportunos.
Encasquetava:
Quando elogiado, desconfiava;
Enquanto amava, padecia;
Quando era ele o amado, desdenho;
Se havia certeza, interrogava;
Se havia clarão, gravidade.
Florisbundo tinha um enorme desbúndio pela
vida. Pensava nela como uma incumbência, uma obrigação. Sabia ser necessário
manter-se vivo, só não entendia o pra quê.
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Floris sofrera poucas ilusões na vida,
talvez por isso fosse tão vazio.
Jamais conseguiu sentir o vento que
refresca ao respirar fundo;
a tranquilidade que atinge a alma,
tingindo-a d´outra cor;
sentir o belo e incontrolável enrubescer da
face;
a palpitação que de súpeto se acelera;
o espanto ao descobrir algo fantástico;
o fechar de olhos e abrir de ouvidos.
Jamais conseguiu sorrir sem motivo e tão
pouco a intensidade de sentir algo que nos invada e faça.
Reconhecia como sua maior qualidade
adaptar-se ao que se exigia. Seu exercício diário era não se tornar
inconveniente e ao mesmo tempo absolver os destemperos alheios.
Floris desgastava-se quando o mundo não agia
como ele.
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Florisbundo também era metódico - E do
pior tipo: do tipo que não percebe ser metódico.
Toda noite saia do banho, vestia o seu pijama
ainda no banheiro, calçava as pantufas, entrava no quarto e descalçava-se ao pé
da cama, deitava-se, cobria-se e beijava a esposa que nunca se virava para
retribuir o cumprimento. Finalmente, Floris se virava e mirava sempre o mesmo quadrante
da parede oposta a esposa. Fixando-se nessa vista de concreto colorido, refletia sobre o decorrer do dia –
que tanto se parecia com os outros- e avaliava os bons e maus momentos.
Ao colocar os fatos sobre essa balança imaginária,
Floris percebia que ela sempre pendia para o lado negativo, concluindo assim
que seu dia fora - novamente - um acumulado de maus momentos. A balança desfavorável quase o anulava.
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Semanalmente trabalhava, sempre acordava
cedo, vestia as roupas adequadas às ocasiões, comparecia aos cultos religiosos,
limpava a casa antes de receber as visitas e tratava todos com exagerada
educação.
Florisbundo vivia à base de aprovações.
Ocupava-se de tarefas que em nada o
ocupavam. Sentia-se vazio; e imenso. Em seu tempo livre, não se livrava de si.
Era óbvio seu problema: ele era seu próprio estorvo. A solução passava-lhe pela
cabeça, botar fim a própria vida. “Temos domínio sobre o próprio tempo.
Continuo por que me relevo”.
Florisbundo, a cada dia, deixava florescer seu
lado suicida. Evitava cometer tal ação por temer sofrer condenações Póstumas!
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Suas melhores aptidões sempre estiveram
rodeadas de imperfeições, de lacunas a serem aprimoradas. Buscava ser pleno,
ideal. Sua vida era uma corrida atrás da linha de chegada que jamais chegaria.
Florisbundo nunca teve e nunca alcançou um
lugar de destaque na vida de quem o conheceu.
Em geral, quem lhe estava próximo não se
queixava da sua companhia como ele imaginava. Em todos os seus relacionamentos
acreditava ser apenas tolerado. O amor para ele era um fictício estado de espirito.
Suas reflexões, apesar de embasadas, eram
desnecessárias para pessoas que – por autopreservação – costumam repudiar
a inocência do estado melancólico. Seus discursos não acessavam as pessoas já tocadas
pela felicidade.
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Florisbundo era novo. Mas em pouco tempo
havia se cansado:
da vida;
da rotina;
da própria Via Crúcis;
das pessoas;
da uniformidade de seus sentimentos;
da espera pelo êxtase;
do emprego;
da mesmice.
Floris tentou de algumas formas
compensar-se. Na última delas resolveu investir seu dinheiro superfluamente, decorando
seu quarto com um novo adorno. Substituiu o abajur que embelezava seu criado-mudo
ao lado da cama, por uma reluzente arma de fogo.
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Diariamente, em sua análise noturna, mirava
o mesmo quadrante de sempre. Embora, agora, o novo objeto comprado fizesse
parte do seu campo de visão. Esta nova aquisição oferecera-lhe um novo caminho
reflexivo. Com o tempo uma nova ideia tomava forma.
Ao fim de mais um rápido e curto dia,
Florisbundo novamente analisou os acontecimentos e, conforme o esperado, a balança
novamente indicou o déficit diário. Floris já tão cansado de si e exausto por ser seu maior infortúnio, decidiu imputar em seu
cárcere pensante um projétil disparado pelo novo objeto comprado.
Mas para a agonia completa de Floris algo
não calculado apresentou-se como resultado. Soube – por um momento jamais
encerrado – que mesmo em morte, continuaria sendo exatamente o mesmo
Florisbundo que fora em vida.
Sua inocência impedira-o de perceber que estamos condenados a sermos uma única pessoa,
Admitindo-nos
ou não.