17.2.12

Rua Tereza, nº 1023

Acordei taquicárdico, assustado. Sabia que fora apenas um pesadelo, mas esse autoconhecimento não me confortou.  Não queria correr o risco de voltar a ter aquele sonho. Desisiti de dormir.

Aos poucos o pouco da claridade que invadia o ambiente ajudava-me a entender onde eu acordara. Meu raciocínio estava lento, minha cabeça doia. Mesmo sem muita nitidez por conta da sonolência, identifiquei alguns móveis: Não eram os meus.

O sol forte abafava. O cobertor - que apesar de cobrir apenas as minhas pernas – passou a me incomodar. Senti uma mão gelada segurando a minha. Virei-me para confirmar quem dormia ao meu lado, embora, pelo ato de apertar as mãos, eu já soubesse: dormia ao lado de Tereza. Dizia só conseguir dormir se nossas mãos estivessem entrelaçadas, que não conseguia ser diferente. Aquilo passava certo conforto a ela e, por isso, não negava, mesmo que me causasse um desconforto algumas vezes. Quando livrava minha mão da dela, apesar de todo cuidado sorrateiro nesse desvínculo, ela não tardava a perceber o vazio nas palmas e, quase sonâmbula, buscava-as novamente. Sinto que Tereza as procurava como uma forma discreta de verificar se já eu havia ido embora.

Pensar nisso incomodou-me e decidi que já era hora de partir. Sem soltar sua mão, mudei minha posição na cama como se ainda estivesse dormindo, de modo a ficar de costas para ela. Lentamente desentrelaçei os dedos e sentei na cama sem causar barulhos.

Num silêncio quase absoluto, levantei e procurei minhas roupas. Vesti a bermuda e busquei a camiseta que estava jogada do outro lado do quarto. Coloquei-a sobre o ombro e, mantendo o silêncio, destranquei a porta. “Minha carteira!” - pensei. Procurei-a em todas as primeiras gavetas de todos os móveis do quarto; Sem sucesso. Costumo guardá-la em lugares fáceis e práticos de se guardar e, portanto, deveria achá-la com a mesma facilidade, mas isso nunca acontece. O difícil é realizar buscas em silêncio: o sono de Tereza é sensível ao fechar de gavetas.

- Aonde você vai? – Disse erguendo o pescoço para conseguir me ver
- Comprar pão. Viu a minha carteira?
- Dentro da minha bolsa. Pode pegar...

Voltei para beijá-la e sai sem mais dizer.

Existe uma praça no final da Rua de Tereza. Desci a ladeira e sentei em um dos poucos bancos cobertos por sombras . As árvores cantavam por assovios. A praça e as ruas estavam vazias e os assovios dos homens ainda não haviam excedido o dos pássaros. Provavelmente ainda era cedo.

Resolvi descansar um pouco no banco em que já estava sentado. Permanecer. Aproveitar o cheiro de mato que a  gelada brisa trazia para organizar os pensamentos. Fiquei ali um bom tempo antes de decidir ir pra minha casa. 

Refletia. Pensava em Tereza, nas coisas que me faziam esquecê-la; No lindo canto vindo dos galhos e como se tornavam ínfimos perto do canto intenso e altivo dos homens, no incômodo e depressão que provavelmente sentiam os pássaros que, por serem melhores músicos, jamais compreenderão a simplicidade das notas ruidosas que saem dos motores e construções humanas.

Percebi, à minha frente, mas do outro lado da praça, uma velha senhora sentada e recostada sob as portas fechadas de um estabelecimento qualquer. 
Espreguiçava-se; Esticava as pernas; Comprimia o dia.

Interessei-me por ela. Intrigou-me. Observá-la naquela manhã seria um ótimo passatempo.

Reparei que não tinha os olhos tristes ou cabisbaixos, pareciam até ter uma certa soberba ou desprezo ao que lhe era alheio. Seu rosto demonstrava cansaço, mas não havia outra expressão que permitisse mais interpretações. Pelas roupas podia-se supor que passava necessidades.

“Mas que besteira a minha!  Entitular pessoas pelas vestimentas: ternos são diferentes de ternos sujos e rasgados, mesmo que tenham sido feitos com o mesmo tecido; roupas que uniformizam limitam as interpretações; camisas pretas com bandas que atravessam ruas ou com Che Gue Varas sem revoluções alguma nada querem dizer,apenas estampam opções e induzem ao consumo.” Mas interpretar a aparência de antemão não é um motivo para julgamentos. Meu cérebro reflete desse modo da mesma maneira que meu joelho refletiria a uma leve martelada.

Levantei do banco a fim de caminhar na praça aproximando-me da velhota. Ao passar por ela, pude ouvir sua voz, mas não entendi o que dizia. Olhava para mim e repetia:
- Você acredita na morte?
Esperei para responder. A resposta parecia óbvia demais.

- Sim, é claro!
- Pois duvide. Ela existe somente para os outros e nunca para você.

Meu silêncio preenchia minhas respotas. Ela continuava:

- A morte é imprevista e incalculável. Até mesmo os enfermos terminais são pegos de surpresa.
- Não dá para advinhar a hora não é minha senhora? – Concordei com um sorriso-riso planejado que mascarava minha vontade de partir.
- Não mesmo querido. – Aprovava e retribuia meu sorriso com uma simpatia banguela. – Nunca teremos a consciência do que é o fim, o nada.

Perguntei: - Você acredita em Deus?
- Sim, claro! – Ela respondia sem pestanejar
- Então, assim como eu, você também perceberá quando a morte chegar. Se escurescer, terá a visão; Se desfalecer: imaginação. Se houver dor, terá o alívio.
- Não vai ter dor no paraíso?
- Acredito que não.
- Mas se a dor não existir, o amor não será possível. Perderemos também a saudade; E os poetas...
- Haverá desapego do passado e do futuro: A vida Eterna!
- Todos os dias eu agradeço a Deus por não ter que ser eterna agora; Neste instante, nesta vida.
- Senhora: Então aproveitemos
        Enquanto ainda temos
         A possibilidade de sentir

- Então vá querido! Vai! – Dizia com impaciência e uma sutil hostilidade –Dê uma volta e vá conhecer as árvores da cidade! Você precisa renascer.

Sorri espontâneamente por ter sido dispensado. Retomei a direção que inciara antes da conversa e distanciei-me dela. Contornei a esquina e decidi não voltar pra minha casa. Deu-me vontade de rever Tereza.

Àquela altura Tereza já teria passado um café. Pedi, peguei e paguei os pães. Subi a Rua de Tereza e bati na porta com paciência.

Ela desceu as escadas e abriu a porta para mim. Havia colocado um vestido azul, discreto, mas que a contornava inteira. 

Estava linda! Provocante, provocou-me enorme deslumbramento. Estonteei! 
E não poderia ser diferente: Tereza fez-me esquecer da velha senhora. E até hoje nunca mais lembrei-me dela.

6 comentários:

  1. Muito bom Bruno!

    Gosto muito dos contos que você escreve.

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  2. prosa poética, quase profética,
    sobre o tamanho.... decididamente leria mais, deu gosto

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  3. Realmente ótimo! É gostoso ler seus contos.
    Cadê o livro cheio deles? rs

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  4. Bruno, cada vez mais você me surpreende! Parabéns, sem palavras. Abraços Duca

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  5. Taquicardica não consigo parar de pensar que ele não ia voltar, achei bem descrita a sedução causada por Tereza, até vejo ela em seu vestido azul... entendo, afinal é difícil escolher entre uma certeza em uma vida finita à escolher uma incerteza em uma vida eterna

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  6. "Ela existe somente para os outros e nunca para você." Adorei, conto marcante para mim.

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O que vier de sua cabeça será bem-vindo....