16.1.12

Lacuna


Lembro-me do tempo em que eu não levantava tantas questões. Crianças não se situam no universo. Não havia necessidade de tantas respostas e nem lacunas para serem preenchidas. Éramos somente eu e meu imaginário talento para a arquitetura.

Eu era excelente na arte de projetar formas. Divertia-me criando edifícios em lugares inalcançáveis. Está ai coisa que adoro: Alcançar esses lugares.

Certa vez, em um dos vários terrenos que arredoavam a pequena vila em que eu morava, descobri uma enorme árvore. Era imensa. Nem 100 homens juntos poderiam abraça-la.

No mesmo dia em que a conheci escalei-a e fiz dela uma nova casa. Não precisei de muitas madeiras ou pregoadas, apenas investi muita imaginação. Criei estantes em seus galhos menores e fiz cama dos maiores. Nos galhos em que sempre havia sombra localizei a minha vista secreta. Por que crianças adoram nomeações secretas? De lá pude avistar piratas, cavaleiros do rei Trouxo, bruxas voadoras e diversos outros inimigos.


Imediatamente corri até em casa para fazer as malas para a minha mudança. Não precisei de muitas coisas: apenas alguns objetos, uma bola de futebol e cartas e desenhos que recebera de Ana.


Tenho saudades do tempo em que Ana e meus outros amigos tinham para mim igual valor. Enquanto não dava atenção para desconfortos da alma, simplesmente por que eu ainda não os tinha, brincava com todos sem nenhuma preferência de companhia, embora fossem as cartas e desenhos de Ana as únicas que eu ainda guardava.


Decorei minha nova casa colando todos os desenhos em galhos e folhas, que para mim eram paredes; coloridas; e que mudavam de cor assim que eu quisesse. 

Camuflava-me. Chamava a atenção. Mas quando Ana estava por perto mudava rapidamente a cor para um tom de roxo escuro criando nela impressões maravilhosas: "Qual garoto tem paredes roxas em sua casa de árvore?" certamente pensava. Sempre achei que essa pergunta fosse intrigante demais para que uma garota resista e não se apaixone.


Mas foi justamente Ana quem me deu uma das maiores tristezas sofrida na infância. Assim que eu expliquei a ela que aquela seria minha nova casa e gentilmente a convidei para subir, foi imediatamente dizer aos meus pais que eu queria me mudar sem avisá-los. Tentei mentir, mas ela acusou-me de desentendido e dissimulado. Quem ensina palavras como essas para uma criança?


Quando anunciou a mudança aos meus pais, todos meus outros amigos estavam presentes e meu segredo arbóreo se desfez tão rápido que não pude evitar. Fui condenado a dividir a imensa árvore com todos, exceto com Ana que não conseguia subir sem arranhar-se inteira. Todos meus desenhos, feitos por ela, foram encontrados pelos cruéis invasores e então usados para sempre caçoarem de mim.


Adorava aqueles desenhos, mas passei a odiá-los. Tomei a decisão que qualquer criança sábia tomaria: Abandonei a arquitetura para que minha masculinidade nunca mais fosse afetada por romancear com menininhas idiotas.


Que saudade do tempo em que podia odiar tudo que vinha de Ana. Saudade do tempo em que tudo tinha a mesma valia para mim.
Pois hoje Ana causa tristezas maiores. Mas compará-la a essas memórias descritas ou a qualquer outra coisa que eu consiga me lembrar em dias futuros nunca servirão de parâmetro para o tamanho que ela me ocupou.
Sinto saudade do tempo que nunca vivi.

4 comentários:

  1. "Saudades do tempo que nunca vivi"

    Quem sabe em outro universo paralelo...

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    1. Nosso cotidiano e conversas registradas discretamente. rsrsr

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  2. fora esse papo de ser durão, os meninos em geral são sempre mais legais que as meninas. rsrs que viagem boa pela infância (ou nostalgia)

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O que vier de sua cabeça será bem-vindo....