28.10.12

Florisbundo


Florisbundo não gostava de flores. Pressentia algo ruim delas. "Exalam um cheiro de morte!"

Ser incrédulo. Floris nunca se dera por vencido. Tinha uma propensão natural para perceber o lado negativo das coisas. Descobria pequenos vãos e frustrava-se.

Teve muitos amigos e alguns bons. (Detinham-distraiam-divertiam)-no. Depois, a sós, Florisbundo relembrava as cenas, pesava as palavras, ponderava os exageros proferidos.
Punia-se por lembrar-se de frases ditas em momentos inoportunos.

Encasquetava:
Quando elogiado, desconfiava;
Enquanto amava, padecia;
Quando era ele o amado, desdenho;
Se havia certeza, interrogava;
Se havia clarão, gravidade.

Florisbundo tinha um enorme desbúndio pela vida. Pensava nela como uma incumbência, uma obrigação. Sabia ser necessário manter-se vivo, só não entendia o pra quê.


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Floris sofrera poucas ilusões na vida, talvez por isso fosse tão vazio.

Jamais conseguiu sentir o vento que refresca ao respirar fundo;
a tranquilidade que atinge a alma, tingindo-a d´outra cor;
sentir o belo e incontrolável enrubescer da face;
a palpitação que de súpeto se acelera;
o espanto ao descobrir algo fantástico;
o fechar de olhos e abrir de ouvidos.

Jamais conseguiu sorrir sem motivo e tão pouco a intensidade de sentir algo que nos invada e faça.

Reconhecia como sua maior qualidade adaptar-se ao que se exigia. Seu exercício diário era não se tornar inconveniente e ao mesmo tempo absolver os destemperos alheios.

Floris desgastava-se quando o mundo não agia como ele.


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Florisbundo também era metódico - E do pior tipo: do tipo que não percebe ser metódico. 

Toda noite saia do banho, vestia o seu pijama ainda no banheiro, calçava as pantufas, entrava no quarto e descalçava-se ao pé da cama, deitava-se, cobria-se e beijava a esposa que nunca se virava para retribuir o cumprimento. Finalmente, Floris se virava e mirava sempre o mesmo quadrante da parede oposta a esposa. Fixando-se nessa vista de concreto colorido, refletia sobre o decorrer do dia – que tanto se parecia com os outros- e avaliava os bons e maus momentos.

Ao colocar os fatos sobre essa balança imaginária, Floris percebia que ela sempre pendia para o lado negativo, concluindo assim que seu dia fora - novamente - um acumulado de maus momentos.  A balança desfavorável quase o anulava.


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Semanalmente trabalhava, sempre acordava cedo, vestia as roupas adequadas às ocasiões, comparecia aos cultos religiosos, limpava a casa antes de receber as visitas e tratava todos com exagerada educação.

Florisbundo vivia à base de aprovações.

Ocupava-se de tarefas que em nada o ocupavam. Sentia-se vazio; e imenso. Em seu tempo livre, não se livrava de si. Era óbvio seu problema: ele era seu próprio estorvo. A solução passava-lhe pela cabeça, botar fim a própria vida. “Temos domínio sobre o próprio tempo. Continuo por que me relevo”.

Florisbundo, a cada dia, deixava florescer seu lado suicida. Evitava cometer tal ação por temer sofrer condenações Póstumas! .


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Suas melhores aptidões sempre estiveram rodeadas de imperfeições, de lacunas a serem aprimoradas. Buscava ser pleno, ideal. Sua vida era uma corrida atrás da linha de chegada que jamais chegaria.

Florisbundo nunca teve e nunca alcançou um lugar de destaque na vida de quem o conheceu.
Em geral, quem lhe estava próximo não se queixava da sua companhia como ele imaginava. Em todos os seus relacionamentos acreditava ser apenas tolerado. O amor para ele era um fictício estado de espirito.

Suas reflexões, apesar de embasadas, eram desnecessárias para pessoas que – por autopreservação – costumam repudiar a inocência do estado melancólico. Seus discursos não acessavam as pessoas já tocadas pela felicidade.


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Florisbundo era novo. Mas em pouco tempo havia se cansado:
da vida;
da rotina;
da própria Via Crúcis;
das pessoas;
da uniformidade de seus sentimentos;
da espera pelo êxtase;
do emprego;
da mesmice.

Floris tentou de algumas formas compensar-se. Na última delas resolveu investir seu dinheiro superfluamente, decorando seu quarto com um novo adorno. Substituiu o abajur que embelezava seu criado-mudo ao lado da cama, por uma reluzente arma de fogo.


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Diariamente, em sua análise noturna, mirava o mesmo quadrante de sempre. Embora, agora, o novo objeto comprado fizesse parte do seu campo de visão. Esta nova aquisição oferecera-lhe um novo caminho reflexivo. Com o tempo uma nova ideia tomava forma.

Ao fim de mais um rápido e curto dia, Florisbundo novamente analisou os acontecimentos e, conforme o esperado, a balança novamente indicou o déficit diário. Floris já tão cansado de si e exausto por ser seu maior infortúnio,  decidiu imputar em seu cárcere pensante um projétil disparado pelo novo objeto comprado.

O que se passou a seguir ao enorme estrondo nunca se soube.
Mas para a agonia completa de Floris algo não calculado apresentou-se como resultado. Soube – por um momento jamais encerrado – que mesmo em morte, continuaria sendo exatamente o mesmo Florisbundo que fora em vida.

Sua inocência impedira-o de perceber que estamos condenados a sermos uma única pessoa,

Admitindo-nos
ou não.

4 comentários:

  1. Oras!

    Florisbundo não gostava de flores , mas possivelmente os “pais” dele tenham escolhido este nome que fez recordar uma flor – Floribunda. Chama-me a atenção o personagem não gostar de flores por lembrar ou exalar um cheiro de morte , porém , ao mesmo tempo pensa em suicídio , eles podem até não estarem correlacionados diretamente , pois existe a vontade de morrer , entretanto , isto levaria a aproximação com o cheiro da flor . Infelizmente sua “inocência” não deixou que ele percebesse isto .

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  2. Bruno, gostei de ler cada linha da sua prosa. O incrível é que, a cada passo, esperava que Florisbundo acordasse para a vida. Alas, nunca aconteceu. As pessoas que vivem dessa maneira, insatisfeitas, questionando tudo e todos, fecham os olhos à beleza das coisas simples que fazem que cada minuto merece ser vivido intensamente, como se fosse o último.
    A sua escrita tocou-me profundamente. Não só a história, mas a maneira de passear o leitor pelas suas ideias.
    Abraço.

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  3. (...) Floris desgastava-se quando o mundo não agia como ele (...)Florisbundo, a cada dia, deixava florescer seu lado suicida. Evitava cometer tal ação por temer sofrer condenações Póstumas!(...)

    Bruno anda se deliciando com hidromel?

    Floris preocupava-se demais com “O QUE AS PESSOAS” pensavam ou pensariam sobre ele ou de alguma forma queria ser compreendido, aceito!
    O mundo não faz a nossas ações, quem as determina somos nós! Esperar que outro tome a frente em nosso lugar, aguardar que alguém se levante e lance sobre ti um elogio, seria como o aguardo de uma criança que anseia seu aniversário e ainda não sabe contar.
    (Lembrei-me de uma música do Biquíni Cavadão: Pra criança que não sabe contar vai levar um tempão).
    Já deixo de pensar que ele seja inocente, ele gostava de ser doente. Afinal há pessoas que gostam de viver desta forma.
    Escreveu um bom texto Bruno e tenho certeza que as pessoas ofereceram muitas opiniões.

    P.S- O texto e uma frase furtou minha atenção _ “O amor para ele era um fictício estado de espírito”. Recordei de uma conversa que tivemos, aliás, uma ótima conversa apesar de uma dor de cabeça importuna. O dia que acreditei conhecer verdadeiramente o Bruno.
    Falei demais deu uma carta. ahhahaha
    Abraço.

    Ah! Aceito réplica!

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O que vier de sua cabeça será bem-vindo....